Tenho uma amiga de coração.
Sim, tenho um coração doído.
Gostaria de explicar a ela que a vida é assim mesmo, que podemos viver na dor quando o amor é seguro. Mas essas coisas parecem-me ditadas por outros seres, os que vivem em nossa cabeça a coordenar as normas e regras cotidianas.
Gozar a dor do amor. Embora soe vitimista, era assim que sempre sentia. Mesmo tendo uma pontinha de dor, ficava contente por estar amando. Às vezes a ponta do coração dói, mas é de tanto amar. Mesmo que o outro não saiba. Mesmo que nem se dê conta disso. Mesmo que se assuste. Mesmo que. Até que descobri que não quero a dor.
Tenho uma amiga que chora, hoje, de mágoa. Ou de cansaço. Ou de acúmulo de tudo. De vida, de amor, de cuidados com aquele que ama, de suas próprias farpas, de susto. Queria também lhe dizer que isso é vida, e só quem tem o prazer e a gula de comer a vida aos bocados é que sente essas coisas. Quando não se quer a dor.
Quem sorve a vida de canudinho, por medo de estragar o batom e a compostura, não sente essa betoneira dentro do peito, girandogirandogirando e fazendo tanto barulho quanto girando e gerando vida.
Mais, mais vida.
Ela é muito betoneira, gosta de vida, de se lambuzar vivendo, de amor e luz e atenções e cuidados e trabalho e riso e tudo e mais um pouco.
Pouco ou muito mais. Desde que seja mais.
Nem sempre a vida deixa, nem sempre nos dá espaço para abocanhar o que se quer ter. Falta dente, na hora, ou falta força para morder. Às vezes também dá cansaço. Vontade de se enroscar e ficar quieta, silêncio de bicho acuado, olhos de domingo de chuva.
Também faz parte.
Que temperamento!, dizem as pessoas normais, tem que brigar e bater pé por tudo aquilo que quer!, não dá pra relevar?, aceitar passivamente pelo menos uma vez?
Não, não dá.
Sinto muito, senhoras e senhores, aceitar também faz parte do giro da betoneira, mas aceitar passivamente? Não, minhas queridas senhoras que tentam educar meu espírito para que ele não enlouqueça tanto, não dá. Não passiva. Aceitar também tem que ser escolha. Escolher a vida, mesmo quando ela não segue os padrões normais de regras de conduta.
E então chega um dia que temos que arcar com nossas escolhas. Se escolhêssemos o que elas, as senhoras, tanto tentaram nos ensinar, ficaria realmente mais fácil. Mas infelizmente não é assim. Se conjugamos outros verbos, diferentes daqueles usados pelas boas meninas, temos que aprender todas as terminações.
E os recomeços.
E as continuidades.
Ninguém vai arcar isso conosco, ninguém vai ensinar a transgredir. Justamente por isso. Porque é transgressão. Senão não faria sentido.
E dói. Dói ter que lidar sozinha com os próprios bichos enjaulados. E agüento, mas não me machuquem, porque dói. Mesmo assim agüento, porque sei que vale a pena.
Mas o que faço com meu coração tão assustado?
Gostaria de dizer para o coração tão doído dessa amiga forte e delicada que a vida é rara e boa. E que, se gostamos de sorvê-la assim, sem canudinho, em grandes goles, nem sempre é fácil.
Mas sempre é maior.
Relaxem, senhoras, descansem, senhores. Sei que não é isso o que gostariam de ouvir, mas uma água com açúcar nem sempre costuma resolver os problemas.
Não, não se assustem.
É só um coração que entrou em ebulição. Está em fogos de artifício.
Nem sempre as decisões são instantâneas, minha pequena tão grande amiga assustada, nem sempre os cercados que nos colocaram têm limites precisos, nem sempre temos certezas ou respostas. Algumas coisas precisam de um pouco de tempo.
Se ainda estou assim, por favor, respeitem minha mudez. Minha nudez. Respeitem minha concha. Daqui não posso sair, não enquanto ainda for areia. É preciso tempo para o amor virar pérola. Quando sair, levo tudo ao meu lado. Amor descalço para sentir onde pisa, para tatear o caminho à procura de. É preciso coragem para amar, para permanecer, reconstruir, aceitar, buscar mais e chorar o choro convulso da vida. E amar.
Minha aura é azul e atenta. Movimenta, ri e renasce. E chora o choro de quem encara tudo com a mesma intensidade com que leva a vida.
Eu perdôo. Eu quero perdoar.
Mesmo com meu contagiro a mil.
Não, não queria falar tanto. Queria só ajudar seu coração a pensar melhor no que lhe aflige, queria lhe dar três gotas de mercúrio para fechar feridas e machucados, para que a vida não machuque mais.
Embora eu mesma não saiba fazer isso.
Ei, Clarice Lispector. Pode me emprestar um poema de primeiros socorros? Um sinal de S.O.S.?
Não, a vida não é fácil mesmo. Mas rara e boa. Aos bocados. Com coração doído e tudo. E muito mais. Mesmo perdida. Porque é assim que se vive, perdendo-se e achando, buscando e saindo à cata de si novamente.
Só que.
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