13/03/2012




“Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo.”
(Clarice Lispector)



Mar, mar, mar: lá estava ela, Florianópolis, a ilha já cercada de saudades por todos os lados. Como fosse ela quem estivesse de partida, e eu ali a olhar o vazio deixado por seu cheiro de sol, o sotaque português de sua gente, a areia tão branca, sol que cega nas dunas, o gosto de maresia que as ostras guardam nas conchas, a sensação de madeira e cor da casa do Campeche.

Agora é só marrom, amarelo e verde, para onde meus olhos vão é sempre terra. Quem dera ter um fio mágico e atar a ilha aqui perto de mim, uma lã azul e leve, firme e forte.    

Quem dera ter Floripa aqui ao lado.

Olho para a ilha com memória de quando ainda não era deste mundo: Ilha do Desterro, a ilha das bruxas desterradas por seus vínculos de entranhas com ligação de mãe-terra, ilha dos pescadores, calmaria e vida que o mar provinha.

Periodicamente vou visitá-la, recarregar energia, dar olá a Iemanjá, sentir o movimento do mar dentro de mim. Mas a cada até logo, dou adeus com dedos tristes. Minhas mãos não querem acenos, mas já não podem segurá-la: novamente a ilha parte, lenta e firme, e vai, toda Avalon, entra na névoa da memória.

É lá que a guardo.




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17/01/2012

Como se não bastasse, ainda queremos mais.


E como se não bastasse essa camada fervilhante de gente que recobre a Terra, a fazer e transportar coisas como se não fôssemos descendentes de deuses ou de macacos mas sim das formigas carregadeiras, como não bastasse ainda queremos mais. Projetamos o futuro, refazemos versões do passado, vivemos nossa história e pedaços de outras, nos metemos na vida do alheio, misturamos tudo e às vezes nem damos conta, mas estamos sempre a querer mais.

E como não bastassem essas coisas todas, há também uma outra camada recobrindo e tão tumultuada quanto, feita dos nossos sonhos, os reais e os sonhados, e todos os mundos projetados, as dimensões, a física quântica, da nanotecnologia aos astros, futuro e passado e seus alinhamentos, desdobramentos e afins.

Vamos desenvolvendo rituais e estes vão se transformando a cada cultura, temos tanta coisa pra fazer no mundo e tanto ainda por fazer, erramos, acertamos, e continuamos a viver a vida porque queremos mais, porque somos espirais ascendentes ou descendentes, somos dialéticos, é um sem fim, e como se não bastasse, como não bastasse ainda ficamos a querer ser felizes. E como o pouco não basta, quando isso acontece é bom demais.




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03/11/2011

"Basta um instante                          E você tem amor bastante"
Leminski


Uma mulher quer ter um filho.

Uma mulher qualquer, dessas tantas que passam ao largo pela rua, carregando consigo a própria história e seus delicados sonhos, essa mulher sonha em ter um filho.
Junto com o sonho aquela que passa ao largo leva também o tudo em que vive e os conceitos que esse mundo carrega. Seu nome pode ser Maria ou Valentina, pode ser simples ou ter várias sílabas, da mesma forma que os conceitos acontecem quando saem no mundo a interagir.

Uma mulher quer ter um filho, mas.

Pensa nas coisas que ouviu e aprendeu. Diz que filho dá trabalho, despesa, precisa primeiro ter uma estrutura, o mundo não está fácil, e sente medo, porque não diz, mas acha que filho atrapalha o curso da vida profissional, tira liberdade, é muita responsabilidade. Então trabalha e trabalha, e fica igual ao homem que queria trabalhar bastante para ganhar muito dinheiro e passar o resto da vida numa casinha com uma rede, na beira do mar, bem simples. E desconsidera que o bom da vida é a viagem, não a chegada, e que filho é isso mesmo, mas é muito mais.

Então ela trabalha e trabalha, e enquanto corre pelas ruas vai adiando o sonho.

É uma mulher que sonha em ter um filho, mas acha que para gerar é preciso ter um núcleo familiar seguro, uma casa adequada e confortável, vida tranquila, sentir que é a hora certa, superar seus erros todos, ter amadurecido tudo o que acha que precisa, estar pronta, e só então ter um filho. Diz que essas coisas são assim mesmo: alguns sonhos dependem de tempo para se concretizar.

E o sonho fica à espera da mulher, enquanto sonha acontecer.

Um dia a mulher que quer ter um filho sente que o tempo está passando. Novamente usa de conceitos que aprendeu, a restrição da idade, diz ela,  sabe dos novos limites da ciência, que os amplia e desafia, mas não se desgarra da data simbólica. E sonha. Mas começa a achar que não vai dar certo, ou não vai dar tempo. E pressiona seu sonho, pensando que ele pode não acontecer.

A mulher passa ao largo, e já não sabe se sonha.


Olhemos para o outro lado.

Lá vem Maria Valentina, pela rua. Uma das tantas que passam por nós todos os dias, carregando consigo seus mundos. É uma mulher que sonha em ter um filho, e de vez em quando olha ao redor, para cima, para as dobras do mundo e pensa em como é bom viver a vida com esse tanto de coisas que o mundo carrega consigo. Pensa que quando tiver um filho vai lhe mostrar as coisas simples e as tantas camadas que os olhos podem ver quando observam, porque acha que viver é complicado, delicado e simples.
Diz que um filho é isso mesmo, complicado, delicado e simples, e que para um sonho desses acontecer é preciso seguir batalhando a vida, e também arejar a casa, botar o rumo no barco, abrir portas e portais para receber, bater longos papos com as estrelas e aproveitar bem as noites de lua cheia. Sabe que filho é resultado do big-bang da criação, e a natureza é sábia quando gera vida.

Enquanto a mulher anda e cuida do cotidiano e suas correrias, leva também consigo a força da mãe-terra, que todas as Marias e Valentinas têm em seu plexo solar. E tem medo, mas também disposição e coragem para viver suas conquistas.

Essa mulher sonha em ter um filho.

E que faça-se o sol.





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19/10/2011

da série Nossos Tipos




Marilinda Mirtes, mexicana, trágica: adora chorar. Não há comedimento em suas ações, sua personalidade é passional demais para reprimir um bom choro, incluídas sentidas e infindáveis lágrimas enquanto se olha ao espelho a soluçar.
É tudo muito repentino: numa quarta-feira às quatro da tarde, no meio de uma cotidianidade qualquer: é uma crise existencial, um jeito todo retorcido de ver as coisas, raios e trovoadas, uma inadequação, uma comédia de tanta tragédia. Marilinda baixou. E não há argumentos racionais, agora é chafurdar no próprio pântano até o dia seguinte, quando tudo retorna à sua normalidade.
Ela borra a maquiagem, faz que disfarça o rolar de uma lágrima mas as verte aos borbotões, funga na manga e não raro põe um rolo de papel higiênico por perto. Desconfie se houver lenço de papel na bolsa: é choro premeditado. Não lhe faltam amigas, embora nem todas sejam próximas o suficiente para compartilhar o chororô, mas sempre se ajudam, irmãs no infortúnio, e depois se esquece tudo o que foi dito.
Marilinda Mirtes diz que vai fazer e não faz, diz que vai e fica, que quer mas não pode, e quando nada diz vai fazendo tudo de sopetão, tudo atabalhoada, toda ímpeto. Vezes há que se arrepende, e isso na maioria das vezes. Mas dá pena, de tanta pena sente de si. É tudo real, os sentimentos daquela quarta às quatro da tarde são todos verdadeiros, dói de verdade. E é tão Almodóvar.
E que não se pense mal: é sempre tudo culpa dos hormônios. Só não se pode deixá-la convencer de que é a vítima nessa história: seria alimentar o dragão, o mesmo que abre as comportas de sua barragem interna.
Na saga em busca de quem queira assumir compromisso diz que é um absurdo que se fale que mulher gosta de ser mandada, e alardeia Eu não sigo as regras de ninguém, nem mesmo as minhas. Também costuma dizer Não vou entregar minha felicidade assim de bandeja, nem pensar!, e começa a romantizar. A lista de homens que passaram por sua vida daria uma seção da lista telefônica, e na narrativa todos começam de forma especial, meio mágica, intensa. Com Marilinda nada é somente.
Quando alguém consegue passar pelo emaranhado de conceitos se depara então com uma prova de resistência, vários quesitos a receber ótimo-regular-ruim, e para entender a lógica nem com Stephen Hawking. Inclusive faz parte a sequência 1. Fazer rir, 2. Ser espontâneo, 3. Respeitar mas não muito, 4. Ignorar temporariamente.
Marilinda, quando namora, sofre da Síndrome da Mulher Maravilha. Tenta fazer tudo Certo, e quando algo dá errado procura o culpado. Geralmente é ela: está acostumada à recorrência da culpa. Se a relação não sobrevive: Você com a Razão e a Culpa é minha. E chafurda no pântano, nem com Hawking, aquilo tudo. Até o finitus est, bye bye borracho.
Então Marilinda entra no Projeto Esquecer, que é como chama o resgate do que julga ter ficado para trás, quando deixou de si para ser o outro. Retoma seus sonhos, seus gostos, seus jeitos de viver o tempo sem ver a si mesma com o olhar daquele que achava tudo aquilo uma piada. Pois agora sente-se fora de controle e é assim que vai ser.
Como dizem os portugueses, A vida é bela e prego a fundo.


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29/09/2011





Escrever é ato de fé: escreve quem crê. É preciso acreditar no que ainda não está materializado, e que começa a ser criado nas sinapses, na boca do estômago, no peito, na razão e pulsação.
Começa mental, e até aí é tranquilo: raciocinar todo mundo faz. Mas entrar numa espiral de processos racionais amarrados em percepções sensoriais, alimentar esses processos com fontes externas e internas, e dispor isso tudo num fio de palavras que sejam no mínimo compreensíveis, aí é que são elas. Tem que acreditar que pode sair algo dali, mais do que meros processos internos.
Escrever é pressupor um leitor, mesmo imaginário. Não é difícil: quem escreve sempre é um pouco esquizofrênico: cria-se personagens, raciocínios alheios, argumentações próprias, patchwork de criação.
Um texto é uma casa que se constrói com materiais diversos mas jeito próprio, como se palavras fossem argamassa moldável, com ritmo, luz-e-sombra, tensões internas, com condução a um tipo de entendimento-e-dúvida. Compor palavras é aprender a negociar com elas: respeitar a liberdade que a linguagem tem e fazer valer uma vontade própria de quem quer criar.
Escrever é operário, broca, porca e parafuso, até que no fim sai um Frankenstein todo diferente do que se pensou a princípio, mas que é e comunica. E que cada um faça como quiser.
Incomoda a exposição desses pedaços que são expostos e que são parte da paisagem íntima de quem escreve, mas é ato narcísico porque pressupõe interesse de leitor. Que se perceba: interesse de leitor, não de repercussão. A linha é tão tênue, e há escritores em todas as escalas, mas as palavras juntas só atingem o toque do Parla! quando prestam atenção em algo maior que a simples contagem numérica. É bacana, é saudável, é justo que se queira alcance, mas essa é só uma das cores da paleta. Outras são várias, como necessidade vital de comunicar, vontade de fazer alguma diferença, dinamite para abrir umas passagens, alguns ácidos, muitos band-aids, um humor descompromissado e muita ludicidade para simplificar nosso Frankenstein.
E que cada um faça o que quiser.



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16/09/2011

Súbito: Aqui Jaz





Súbito era um homem sem memória. Ao longo do tempo sempre se surpreendeu com as coisas que aconteciam consigo e com sua vida. Porque Súbito sonhava, mas não planejava, e seus sonhos sempre súbito esquecia.
Dos acontecimentos elegia alguns para lembrar e relembrar ao infinito. Guardava as memórias em caixas, lacradas e etiquetadas, feito os Famas do Cortázar, e esquecia: confortável. Dos Cronópios, aqueles seres que deixam as lembranças correrem soltas pela casa e de vez em quando recomendam a elas Cuidado com o Degrau, desses tinha certo receio por terem recordações demais. Muita bagunça.
Sobre as pessoas, pensava que a distância cria o encantamento. Súbito nunca se casou: É muito para a vida toda, é íntimo, é cotidiano, é falar baixo. Sua opção? Relações inatingíveis, guardadas no passado, ancoradas no futuro, fugazes e impessoais.
Súbito fez amigos com surpreendente facilidade, do dia para a noite, e os deixou para trás no calendário com igual rapidez. Quando sozinho para dormir, seus sonhos ou pesadelos revelavam não mais que vaga lembrança.
Súbito era sisudo, mas tinha sempre algo a dizer, alguma frase pronta, uma opinião formada, algum comentário de alguém, um ditado, uma piada raras vezes. Também os pensamentos guardava compartimentados. Dizia: 'Mentes fechadas têm bocas abertas, já disse alguém', e mantinha ambas cerradas enquanto tomava decisões seguindo ímpeto e instante. Cumpria: sempre e apenas rápido cumpria.
Morava numa casa de madeira escura, com muitas portas. Não se sabe que idade tinha há pouco, mas seu andar era de muitos anos: andava como quem tem vontade e cansaço. Seu jardim não tinha flores ou plantas cultivadas, mas dentro de casa Súbito colecionava relógios, inúmeros relógios, todos apenas com os ponteiros de segundos: É preciso ver o tempo passar rápido, professava com ar sábio.
Sua vida foi rápida.
Súbito morreu.
Na sua lápide:
Aqui jaz.




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25/08/2011

O verdadeiro falso



Verdade seja dita: eu minto: sou um verdadeiro falsário. A mentira me compraz e me enriquece, não apenas monetariamente, mas porque convivem dentro de mim três ou quatro personagens ilustres. Dei-lhes os nomes devidos para poder evocá-los. Com eles sou grande e forte, astuto o suficiente para ludibriar e me divertir às custas de: pobres coitados, os de fora.
Os de dentro são ricos: sou detentor de um segredo, e como tal sou poderoso. Ninguém sabe o que sei, ninguém mais faz o que faço. A história é enriquecida de poucos e grandes falsários, mas sucumbiram à falta de limites. Agigantaram-se e perderam a dimensão do mundo.
O verdadeiro falsário não perde a dimensão do que é legítimo. Minha obra baseia-se na tríade Desejo-Vaidade-Segredo. Sou legitimado pelas forças humanas. O desejo move, a vaidade gera a posse, o segredo sustenta. A cereja do meu bolo: aval de experts e depois silêncio: ninguém quer ver suas suspeitas confirmadas. É minha prova de sagacidade, de técnica e aprimoramento.
Tempos atrás liguei para uma boa revista, destas que fazem matérias longas, e discorri a respeito do que acontece num shopping/antiquário do Rio de Janeiro, reduto de falsários baratos. Fui ético: não gosto de ver pessoas sendo enganadas por copiadores vulgares e sem competência, que enganam qualquer um a preço de nada. Não gosto principalmente de vê-los infiltrados na profissão, é desabonador.
O Falso é o que sustenta a humanidade. Com a Verdade estão todos preocupados, é foco de atenção das religiões à Ciência. A Verdade se ergue e sucumbe, alternadamente. Já o Falso... está sempre de soslaio, à espreita de mais uma queda para revelar sua verdadeira identidade.
Sou a personificação do Falso, e como tal serei reconhecido quando tudo vier à luz. Sou maior que o Amor, que acaba, mais forte que a Verdade, que tropeça, sou além da Vida, que é finita. Sou Mistério, Poder e Vaidade, sou sobre-humano.
E para quem está concordando,
tenho a dizer que:

É tudo falso.

Sou apenas um homem comum.





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04/08/2011





Quando o conheci, já era um artista velho e cínico. Exasperava-se com a burrice e no entanto a ignorância era um deleite. Decifra-me ou te devoro, era a frase sedutora, mas seus esquemas de esfinge acabavam por revelar o morcego de radar provinciano.
Aparentemente francês, cidadão do mundo, bengalas e chapéus foram encobrindo seu medo do outro. Acabou dândi de uma ilha: figura local.
Sua arte, grandiosa, era interceptada por uma personalidade cinco estrelas: muitas pontas, nenhum apoio, muito brilho inalcançável. Figura compacta de cor dentro do traço-limite escuro.
Do passado, sempre histórias grandiosas, quando era rei em Paris. Na primeira infância sempre somos reis. Não se tem notícia de ter voltado lá depois que cresceu e virou este.
Aqui montou uma família: redoma de supostas excentricidades para que não fossem descobertas suas qualidades humanas, seus pavores e justificativas esmigalhadas.
Separa o mundo em castas e não toma antiácido. Seu fígado real é quem determina o modo como trata os plebeus. Condescendente quando não lhe causam afronta, bondoso quando não se sente ameaçado, tirano com escolhas sexuais, irônico, professor, Prima Donna.
Sua arte amadurece e talvez floresça quando não tiver mais o gênio a conter sua saída para o mundo. Pensam em montar uma instituição para sua salvaguarda, mas talvez se transforme em mais uma redoma de excentricidades a interceptar acesso.
Isso exaspera: estamos mais interessados em desfrutar da obra, não em suportar o gênio, embora seja peculiar em breves tempos. Artistas são assim mesmo, era o pensamento corrente nos séculos passados, mas hoje se pensa em arte para o mundo, misturada nele, gerando movimentos ou silêncios, mas sempre face-a-face e sem intermediários.
Por fim, um recado à la Caetano:
arte é para brilhar, não para morrer de medo.


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06/07/2011

Madame Bodosa




Com seu ar de alta sociedade e autoestima de protagonista, Madame Bodosa sabe ter inúmeras qualidades. Umbigocêntrica e vaidosa ela as desfia, com requintes de detalhes, aos ouvidos que estiverem por perto.
Seus filhos moram no exterior, a sobrinha trabalha numa multinacional, o cachorrinho tem roupas de grife e é cliente de uma franchise, você entende, diz ela com ar de consternação, por aqui são todos tão tupiniquins, temos que nos aculturar, os Estados Unidos são tão desenvolvidos!, mas a Europa é mais refinada... Creio que fala da França, sua referência recorrente desde que fez uma viagem para lá, há alguns anos.
Meus filhos gostam muito de lá, não acostumam mais com aqui. Não se pode saber onde é ‘lá’, mas o Lá é sempre superior ao Aqui. Suas raízes são de parte alguma: nobres costumam ser assim, o sangue azul sempre se autorreferencia. Não há os-meus-os-teus-os-nossos, como poderia haver? Os Meus é que são. Moram no exterior, trabalham numa multinacional, já lhe falei?, a sede da empresa da minha sobrinha é Lá, está para receber uma proposta e mudar para a sede, lá é muito melhor.
Minha sobrinha foi educada por mim, é uma pérola!, e discorre, sempre longamente. Com o cachorro só fala em inglês, duas ou três palavras, ele é muito educadinho, mas só entende se falo assim – e suspira, resignada – creio ter que fazer umas aulas da língua da rainha Elizabeth.
Por estes dias esteve preocupada com a onda de frio no Sul: Ando sem tempo, mas assim que puder vou tricotar imediatamente alguns cachecóis para as crianças carentes. Temos que fazer alguma coisa por estes pobres! Fiz uma limpa no guarda roupa, dei uma porção de coisas, olha, roupas caras, até um casaco da Bloomingdale que comprei uma vez nos Estados Unidos, foi tudo para uma mocinha minha serviçal, mas não vão me fazer falta, precisava mesmo renovar o meu vestir.
Seus hábitos condizem: cultiva o bom humor matinal, passeia com Bob o cachorrinho de marca, leva a sério a máxima de você é o que você come, participa do Criança Esperança, gosta de calçadas limpas, acha bonita essa moda dos famosos adotarem crianças pobres, sabe-se lá o que levam para casa.
Quando criança pensava em ser Barbie, diz ela, os olhos úmidos de sonhos. E ri, do seu alto: Hoje não sonho mais. Creio ter alcançado tudo o que quis. Sua vida é linda: tem filhos no exterior, já lhe falei deles?, cachorro de raça, cabelos e jóias sempre da melhor espécie, mora no plano que sempre almejou, tem muitos amigos que lhe escutam solícitos, suas mensurações monetárias sobre as delícias da vida têm vários dígitos.
Madame Bodosa é generosa, Madame Bodosa é um primor.
Como poderia não ser feliz?




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24/06/2011

Liz e o Tempo



Te escrevo, filha, porque o tempo passa. Te conto do simples, para que ele não caia no cotidiano e se perca, para preservar a memória do que já é teu e tu ainda não sabes.

Da tua história posso te dizer que ela começou bem antes de ti, do mesmo modo que começamos todos nós. Somos fios de um tear que é ao mesmo tempo próprio e herdado. Somos feitos de inúmeros sobrenomes, raízes que se entrelaçam gerando brotos, frutos e flores. Tu te chamas Chiaradia Figueiredo Bordignon Meira Menegatti Canfild e mais todos os outros sobrenomes dos que vieram antes de ti, e por isso teu nome é tão curto: para dar simplicidade a eles todos. Liz é simples, e a boca vira em sorriso quando pronunciado.

Em sorriso te esperamos: tua espera foi adubada, lenta e atentamente. Lembro da espera que olhava muito para as estrelas, imaginando em qual delas tu poderias estar. Punha um sol na minha barriga e flores em meus olhos para te indicar o caminho, falava do ninho de amor que teu pai e eu estávamos preparando, aquecendo para te receber. Fazíamos planos que sempre te incluíam, tecíamos um futuro com tua presença, e assim construímos uma casa para te receber nesse mundo.

Agora estamos todos aqui. Quando seco teu corpo, depois do banho, vou dizendo vamos secar a cabeça, que aprende tudo, é inteligente e criativa, vamos secar esse braço forte que vai pegar o mundo e essa mão que pega tudo também, vamos secar essa perna forte que vai andar pelo mundo e esse pé que vai andar muito também, e assim vou te preparando para viajar, degustar, provar a vida. Cada parte do teu corpo está sendo conectada para viver experiências únicas, pessoais, intransferíveis, diferentes e irreverentes.

Quando, aos oito meses de gestação, teu pai e eu te levamos para mares de viagem, era isso que estávamos te dando: o mundo. Te banhava com as ondas: olha, filha, olha o mar que vai e vem, cidades e histórias submersas, seres viajando por cima e por baixo d’água, vidas são cíclicas, o mundo é grande e redondo, não há cantos, não há fim de linha, tudo vai e vem, se desfaz, refaz e recomeça.

O dia do teu nascimento era dia de São Jorge. Dai força à nossa guerreira, pedi ao santo. Espada para enfrentar, escudo para se proteger e seguir em frente. Parece que fui atendida. Teu espírito é vivaz, voraz, risonho e simples. É curioso: chora de susto, mas não chora de dor. Não esqueça nunca que tens embutida numa das mãos a espada e na outra o escudo. Faz bom uso deles ao longo da vida.

Para ti quero poucas coisas, para que possas se ocupar prazerosamente com teus próprios quereres. Quero que tenhas sentimentos de pertencimento, humildade e curiosidade para aprender sobre o mundo e todas as coisas que dentro e sobre ele estão, ludicidade para encarar a vida, muitos risos, belos vínculos, malemolência e gentileza, muita.
 Poucas e boas coisas: são meus quereres decantados. Quero que sejas feliz nesse nosso mundão, tantos querendo fazer tanto e tudo, sem saber que somos infinitos, do infinito viemos e a ele voltaremos, e isso é tudo.

A vida agora é tua. Te amo, te educo, te instigo, te ensino regras pela manhã e te dispo delas à noite, para que possas viver a vida com e sem elas. O mundo é grande, e é sempre bom saber que se pode transitar.

Quanto à tua família, te ampara nela como teu tecido emocional. Tens amor incondicional, uma família grande e pulsante, e um jeito de amar diferente que vem de cada um. É teu refúgio e tua fortaleza, a casa quentinha para onde podes retornar sempre que se fizer noite e chuva lá fora.

Trouxeste o próprio tear, menina Liz, e teus fios são todas as gerações que vieram antes de ti mais todas as cores que queiras inventar. Presta atenção nas tuas escolhas, porque são elas que compõem o nosso olhar, e é sempre bom vermos a nós mesmos com tranquilidade. Mas pega teu tear com as duas mãos, com braços de mundo, com cabeça que quer experimentar seus próprios desenhos e composições de cores. Teu tear é só teu, e o jeito de fiar ninguém ensina a ninguém. Tens que experimentar seus próprios fios e a delícia de compor um desenho único e inusitado.

Tua vida é tua.


 



21/06/2011

Quando os sentidos aprendem arte




Quando descobri o mundo vi primeiro nos ladrilhos do banheiro. Eram somente manchas, pretos e brancos em gradações de cinzas abstratos. Via então da mesma maneira como brincávamos com as nuvens: o olhar solta-se do já concebido e entra em outro mundo, feito de formas. Somente formas.
Naquele mundo abstrato vi um mundo real feito de cavalos, montanhas e moinhos, velhos encarquilhados, olhares de bruxa, expressões, muitos rostos e mãos. Tentava desenhar, capturar linhas inclinações e retas e curvas, mas minha mão não fazia o que eu via.

Encabulado, o traço saía escondido.

Com o passar do tempo fui aprendendo que havia outras pessoas a contar do mundo que se vê nos abstratos íntimos, aprendi os nomes das formas do mundo, e pude explicar aos meus olhos. Foi então que meu corpo começou a entender: a mão e o braço já podiam finalmente se comunicar.

Foi assim que aprendi arte.

Quem diz que aquelas pinturas, daquele grande artista abstrato, até seu sobrinho faria, está certo. O sobrinho talvez esteja vendo um mundo em outra dimensão, diferente do mundo dos ladrilhos, mas igualzinho por ser único, pessoal e intransferível.

E também por isso: que não se diga o que é preciso ver e como sentir. Toca-se com a ponta dos dedos um mundo que é de soluções e inquietações, do que atinge porque sensibiliza, do que é paradoxo porque ali está o que artista buscou e não encontrou, pois a Resposta Correta calaria a plurivocidade da obra de arte.

E com isso, ou a despeito, nos emociona.

Você vai saber quando está frente a uma verdadeira obra de arte se acontecer, no seu olhar e na sua respiração, a mesma sensação do olhar de paixão, amor ou ódio, como se passasse a respirar junto com a obra, um querer olhar mais do que cabe dentro de si. E feito gatos curiosos nos acercamos. Queremos saber como se chama, quem foi que fez e do que é feita, buscamos dentro do nosso referencial as palavras que possam descrever o que se está sentindo.

E é então que começam os conceitos. Só então.

Quanto mais referenciais, quanto mais você souber falar a língua da arte, mais palavras terá para descrever o que sente e a riqueza do que está vendo - inclusive a si mesmo – e o mundo vai sendo desvendado, fica cada vez mais rico, com maiores gradações e nuances. Então ela, a obra de arte, nos contará o que estava acontecendo no momento em que foi concebida e gerada, o que estava a passar pelo mundo, vai contar sobre o artista como sujeito do mundo naquele instante em que foi composta peça a peça, nos contará aos cinco sentidos de coisas que já sonhamos mas ainda não sabíamos.

E então faz-se a luz.

Isso é aprender arte.





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É só um coração que entrou em ebulição. Está em fogos de artifício.






Tenho uma amiga de coração.

Sim, tenho um coração doído.
Gostaria de explicar a ela que a vida é assim mesmo, que podemos viver na dor quando o amor é seguro. Mas essas coisas parecem-me ditadas por outros seres, os que vivem em nossa cabeça a coordenar as normas e regras cotidianas.

Gozar a dor do amor. Embora soe vitimista, era assim que sempre sentia. Mesmo tendo uma pontinha de dor, ficava contente por estar amando. Às vezes a ponta do coração dói, mas é de tanto amar. Mesmo que o outro não saiba. Mesmo que nem se dê conta disso. Mesmo que se assuste. Mesmo que. Até que descobri que não quero a dor.

Tenho uma amiga que chora, hoje, de mágoa. Ou de cansaço. Ou de acúmulo de tudo. De vida, de amor, de cuidados com aquele que ama, de suas próprias farpas, de susto. Queria também lhe dizer que isso é vida, e só quem tem o prazer e a gula de comer a vida aos bocados é que sente essas coisas. Quando não se quer a dor.
Quem sorve a vida de canudinho, por medo de estragar o batom e a compostura, não sente essa betoneira dentro do peito, girandogirandogirando e fazendo tanto barulho quanto girando e gerando vida.
Mais, mais vida.
Ela é muito betoneira, gosta de vida, de se lambuzar vivendo, de amor e luz e atenções e cuidados e trabalho e riso e tudo e mais um pouco.
Pouco ou muito mais. Desde que seja mais.

Nem sempre a vida deixa, nem sempre nos dá espaço para abocanhar o que se quer ter. Falta dente, na hora, ou falta força para morder. Às vezes também dá cansaço. Vontade de se enroscar e ficar quieta, silêncio de bicho acuado, olhos de domingo de chuva.
Também faz parte.
Que temperamento!, dizem as pessoas normais, tem que brigar e bater pé por tudo aquilo que quer!, não dá pra relevar?, aceitar passivamente pelo menos uma vez?
Não, não dá.
Sinto muito, senhoras e senhores, aceitar também faz parte do giro da betoneira, mas aceitar passivamente? Não, minhas queridas senhoras que tentam educar meu espírito para que ele não enlouqueça tanto, não dá. Não passiva. Aceitar também tem que ser escolha. Escolher a vida, mesmo quando ela não segue os padrões normais de regras de conduta.
E então chega um dia que temos que arcar com nossas escolhas. Se escolhêssemos o que elas, as senhoras, tanto tentaram nos ensinar, ficaria realmente mais fácil. Mas infelizmente não é assim. Se conjugamos outros verbos, diferentes daqueles usados pelas boas meninas, temos que aprender todas as terminações.

E os recomeços.

E as continuidades.

Ninguém vai arcar isso conosco, ninguém vai ensinar a transgredir. Justamente por isso. Porque é transgressão. Senão não faria sentido.
E dói. Dói ter que lidar sozinha com os próprios bichos enjaulados. E agüento, mas não me machuquem, porque dói. Mesmo assim agüento, porque sei que vale a pena.
Mas o que faço com meu coração tão assustado?

Gostaria de dizer para o coração tão doído dessa amiga forte e delicada que a vida é rara e boa. E que, se gostamos de sorvê-la assim, sem canudinho, em grandes goles, nem sempre é fácil.
Mas sempre é maior.

Relaxem, senhoras, descansem, senhores. Sei que não é isso o que gostariam de ouvir, mas uma água com açúcar nem sempre costuma resolver os problemas.
Não, não se assustem.
É só um coração que entrou em ebulição. Está em fogos de artifício.

Nem sempre as decisões são instantâneas, minha pequena tão grande amiga assustada, nem sempre os cercados que nos colocaram têm limites precisos, nem sempre temos certezas ou respostas. Algumas coisas precisam de um pouco de tempo.
Se ainda estou assim, por favor, respeitem minha mudez. Minha nudez.  Respeitem minha concha. Daqui não posso sair, não enquanto ainda for areia. É preciso tempo para o amor virar pérola. Quando sair, levo tudo ao meu lado. Amor descalço para sentir onde pisa, para tatear o caminho à procura de. É preciso coragem para amar, para permanecer, reconstruir, aceitar, buscar mais e chorar o choro convulso da vida. E amar.
Minha aura é azul e atenta. Movimenta, ri e renasce. E chora o choro de quem encara tudo com a mesma intensidade com que leva a vida.
Eu perdôo. Eu quero perdoar.
Mesmo com meu contagiro a mil.

Não, não queria falar tanto. Queria só ajudar seu coração a pensar melhor no que lhe aflige, queria lhe dar três gotas de mercúrio para fechar feridas e machucados, para que a vida não machuque mais.
Embora eu mesma não saiba fazer isso.

Ei, Clarice Lispector. Pode me emprestar um poema de primeiros socorros? Um sinal de S.O.S.?

Não, a vida não é fácil mesmo. Mas rara e boa. Aos bocados. Com coração doído e tudo. E muito mais. Mesmo perdida. Porque é assim que se vive, perdendo-se e achando, buscando e saindo à cata de si novamente.

Só que.




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16/06/2011

Da poesia - em voo solo



Da poesia nada sei. Ela é que me sabe. Velhas amigas, amantes inconfidentes, rebeldes, transgressoras, cúmplices, ela e eu, de nós mesmas. Dela não poderei jamais me separar. Nascemos juntas.

Da poesia muito sei. Ela me sabe mais. Dessa mania incontrolável de evaporar janela afora, dos desejos estranhos que fervem em algumas madrugadas de chuva, dos desvios, dos desvarios.

Minha poesia vem do riso, da paixão, do susto, sustento, tombo, cambalhota, saliva e gozo. É construída, concreta, sábia, demente, duvidosa e polígama. É a Geni que aceita o Zepelim, a cortesã que testa o mandarim, a Rapunzel que joga suas tranças para que eu possa galgar seu castelo nas noites de amor. Ela testa, combate, desafia e me devolve à vida. É o retrato de Dorian Gray a envelhecer por mim, a conter, contar, me recriar. Por ela posso manter-me crente na vida, no mundo, bombocados de amor, goles de mim.

A poesia é meu espaço aberto, campos de trigo, girassóis, rosto voltado à luz e riso, gargalhadas de sol. Quando asfixio rompe cadeados de atenções, desvia olhares, me põe de louca. Ensandeço, entonteço, desapareço espaço aéreo, ela eu, bocados de nuvens, algodão doce, infância e riso. O antídoto às seriedades, a máscara de oxigênio. Minha poesia me faz respirar.

Então me expando, estico e voo espreguiçadamente. Minha poesia é uma rede balançando em sua própria poética, na teimosia em ser livre, no espírito que canta em pleno vôo e meus olhos que acompanham daqui, da janela da torre, enquanto Maria Callas e seus timbres mais agudos ressoam, reverberam, eu reverberando, verbando, verborragia em poesia.

Posso voar.

Minha poesia é desassossego, paixão pela vida, meus nós, sustos, transgressões, sou seu espaço para poder amar aos ventos. Meus olhos. Meus azuis. Meu tato. Química da paixão.

No amor revivo. Por ele não morro. Respiro.

Fome de nuvens.

Minha poesia é meu voo. Amante. Silente.

E livre.





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Da mulher que tomava café com borboletas. Dizia, já então, que a infusão lhe dava ares. Em dias de chuva se liquefaz e gotas de suor lhe esvaem dos olhos.

Diz então que viver dá trabalho.

Gosta de seus inúmeros pares de calçados, sempre atormentada, a pobre esquizofrênica. Tenho sempre que saber onde piso disse-me um dia.

Nem sempre, me disse em outro: a vida tem passos de dança.

Por vezes criou hera em seus olhos. Raiva, ciúme, culpa, dor. Peixes nadando em seu silêncio. Por vezes cresceu amor, histórias, que me dizia, a velha jovem sábia.

Sobre pairar e amar feito gente grande.

Também quer criar raízes, arraigar para não sacolejar tanto, mas novamente se liquefaz, trepadeiras agarrando-lhes os olhos, buscando ver o que não quer.

Nem sempre consegue.

Nas grandes ocasiões lhe dou de beber chá: infusão de inusitado. Aplaca-me a sede de mundos, diz ela, com os olhos envoltos no vapor. Quer a vida em grandes goles.

Dias há que queima a boca.

Quando ama, me diz sobre ter colhões, enquanto mergulha suas borboletas numa dose de whisky cowboy. De seus casos trata com Sybil, Jung e Reich, processo de terapia e cura, peace and Love. Questiona o amor, as formas de amar, a dor do amor, os amores doentios, amor pra dar e vender, dar-se sem se abandonar, questiona o próprio abandono e a dor e o amor e vai em  frente. Acaba concluindo que bom mesmo é viver.
E se joga.
Debate-se, mas se joga.
E nunca perde.

Da mulher que tomava asas, por vezes me diz do medo. Fala com a seriedade suave que destina aos assuntos importantes. Diz do quarto escuro. Do desconforto do desconhecido, da maciez do amor, do corte na carne. E diz da alma, que parece não mais voltar pra casa.
E enquanto fala, na força do não chorar, seus olhos se debatem.

E pestanejam.

Feito borboletas.




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Silenciosa era feito seu nome. Teve um filho lá outro cá; do outro, quando morreu, disseram virou anjinho. Ela emudeceu.
Da vida ela gosta e não reclama, nada diz da dor. Conta os sonhos com medo de falar e neles conjuga os verbos do querer em futuro distante, frases iniciadas com quando eu crescer. Crescida, já mulher feita, refaz caminhos com silêncio de vergonha. Tem amor, alegria, vontade de aprender, gula, vergonha, medo, dor. Nada fala: volta para dentro de si.
Vergonha quando voltou à cidade de onde partiu, quando ainda não era ela. Buscava memórias, relatos, consertos, sozinha olhava para trás. À sua volta havia lacunas, contos de quem nunca mais, sua memória não era mais sua, o que era próprio não lhe dizia respeito. Nada dizia. Silenciosa, apenas ouvia com os olhos.
À parte os relatos, tem cacos de memória que machucam. Nojo: espero você voltar, lhe dissera o tio aos 11 anos. Depois novamente fugir de mãos que invadiram sua meninez. Fugir é uma forma de calar.
Quando volta à tona e submerge, sonha ter luz de sol. Não sabe que já a tem. Quando eu crescer, subjetiva, abstrata. Sofre em silêncio: só conta seus medos depois, quando conta. E quando conta é como fosse nada, apenas uma curiosidade, uma pastilha qualquer que fala docemente, quase a se desculpar, sabe que estava com medo?, e ri, em doçura. Acha que é errado. São fibras nordestinas, povo forjado no sol cáustico.
A mãe tem falas agudas e olhos risonhos. A filha sorri muito e quando séria engole em silêncio. Povo ensolarado e forjado na vida. Silenciosa é mãe das duas mas tem medo. Seus tombos guarda no fundo do poço e daqui pode-se ouvir os ecos, mas ela os trata como barulhos do vento: parece que vai chover, conta calada. E muda fica.
Então fala bastante suas falas diárias. Suas palavras são casulo para um silêncio que não sabe exprimir. Quando uma nesga se abre e algo é entrevisto rápida puxa fio de palavras que envolve até o atordoar. Onde guarda sua voz ninguém sabe, talvez só ela mesma. Ou nem. Gostaria de lhe dizer confie na vida, tudo está dando certo, mas não sei se sei dizer essas coisas. Não sei quantas quedas tem seu poço profundo. Emudeço com ela, e com ela aprendo a dar um amor mudo, feito de simplicidades cotidianas.
Com seu povo aprendo a sorrir com os olhos e aceitar em silêncio gestos sérios.
Silêncio também é jeito de amar.





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